Sabia que esse dia ia chegar. O dia em que ia ter de contar, de explicar, de tirar dúvidas. Seria normal que viessem as perguntas um dia e que tivessem de vir as respostas. Achava é que seria mais tarde. No mundo ideal as perguntas viriam de forma mais espontânea e natural e viriam mais tarde, quando já estivesse crescida para conversar sobre isso. Mas, como não estamos no mundo ideal, as perguntas e as dúvidas vieram agora. Da pior forma. Daquela forma que não queria que viessem. Que não viessem sob a forma de um sistema nervoso alterado, de uma criança cheia de dúvidas, zangada, confusa, muito confusa, com sentimentos de culpa, porque é vítima de uma pessoa muito doente que a massacra. De uma forma muito cruél. E não percebe o que faz. Ou pelo menos prefiro acreditar que não percebe. Porque então se percebe ainda é mais cruél. Sempre soube que isto acontecia. Não sabia era a extensão. E acho que ainda só percebi uma parte muito pequena. É feio, muito feio este jogo. Brincar com os sentimentos de uma criança. Por vingança. Por orgulho ferido. Por ser incapaz de seguir em frente a sua vidinha e deixar de ser estúpido. É feio. Porque tudo isso é para atingir outra pessoa. Mas não atinge. Atinge-a a ela. Muito. Que se agarrou a mim ontem a chorar e a pedir ajuda porque não sabe lidar com isto. A pedir-me por tudo que lhe dissesse o que devia fazer. Porque tem medo. Tem medo de reacções. De zangas ou pior. Porque é recalcada. Porque a fazem sentir culpada. Porque sente que não pode abrir a boca. Porque sente que não é respeitada. E como tem medo, cala-se, encolhe-se, não responde, não pede que parem, e depois fica com tudo lá dentro, até que explode. Porque não quer ouvir nada daquilo, mas não consegue dizer. Porque não quer mais perguntas, mas não sabe dizer. Porque está farta da lavagem, mas não sabe dizer. E ontem contou muito. As perguntas intermináveis, as caras feias com o que responde, os comentários depreciativos, as mentiras, tantas mentiras. E foi nesse momento que percebi que tinha de lhe contar, que tinha de lhe explicar. Que tinha de fazer um esforço por que lhe explicar assuntos que não são para a sua idade de modo que percebesse. De uma forma verdadeira, clara, transparente. Sem nunca dizer mal de ninguém. Mas dizer-lhe a verdade. Porque não podia continuar a deixar que vivesse massacrada com mentiras e com chantagens emocionais. Foi difícil, muito difícil. A única coisa que me atinge é vê-la triste, confusa, com medos, com sentimentos de culpa por coisas que nunca, mas nunca lhe deviam ter sido ditas. E isto é só o início de uma caminhada. Há pessoas incrivelmente estúpidas. Incrivelmente más. Deviam era meter-se com alguém do seu tamanho. Cobardes!