Fruto de uma passagem pelo curso de Direito, tive contacto com textos legislativos assim importantes na nossa ordem jurídica (aos quais Passos Coelho e amigos deveriam ter sido apresentados, mas isso é outra conversa), tais como a Constituição da República Portuguesa ou o Código Civil Português. Fiquei com uma ideia, digamos, genérica, do que juridicamente é considerado coisa. Fiquei com aquela ideia assim, vá, quase leiga de que coisa seria tudo o que poderia ser vendido, doado, trocado, apropriado e isso. Daí que, por exemplo, apesar de chocar algumas pessoas, os animais sejam juridicamente considerados coisas.
Só para me relembrar, fui reler o Código Civil (com tanto livro que tenho em espera para ler). E este dita assim:
SUBTÍTULO II
Das coisas
Artigo 202.º (Noção)
1. Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas.
2. Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
Artigo 203.º (Classificação das coisas)
As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis, consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes ou futuras.
Artigo 204.º (Coisas imóveis)
1. São coisas imóveis:
a) Os prédios rústicos e urbanos; b) As águas; c) As árvores, os arbustos e os frutos naturais, enquanto estiverem ligados ao solo; d) Os direitos inerentes aos imóveis mencionados nas alíneas anteriores; e) As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos.
2. Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
3. É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência.
Artigo 205.º (Coisas móveis)
1. São móveis todas as coisas não compreendidas no artigo anterior.
2. As coisas móveis sujeitas a registo público é aplicável o regime das coisas móveis em tudo o que não seja especialmente regulado.
Artigo 206.º (Coisas compostas)
1. É havida como coisa composta, ou universalidade de facto, a pluralidade de coisas móveis que, pertencendo à mesma pessoa, têm um destino unitário.
2. As coisas singulares que constituem a universalidade podem ser objecto de relações jurídicas próprias.
Artigo 207.º (Coisas fungíveis)
São fungíveis as coisas que se determinam pelo seu género, qualidade e quantidade, quando constituam objecto de relações jurídicas.
Artigo 208.º (Coisas consumíveis) São consumíveis as coisas cujo uso regular importa a sua destruição ou a sua alienação.
Artigo 209.º (Coisas divisíveis) São divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.
Artigo 210.º (Coisas acessórias)
1. São coisas acessórias, ou pertenças, as coisas móveis que, não constituindo partes integrantes, estão afectadas por forma duradoura ao serviço ou ornamentação de uma outra.
2. Os negócios jurídicos que têm por objecto a coisa principal não abrangem, salvo declaração em contrário, as coisas acessórias.
Artigo 211.º (Coisas futuras) São coisas futuras as que não estão em poder do disponente, ou a que este não tem direito, ao tempo da declaração negocial.
Artigo 212.º (Frutos) 1. Diz-se fruto de uma coisa tudo o que ela produz periodicamente, sem prejuízo da sua substância.
2. Os frutos são naturais ou civis; dizem-se naturais os que provêm directamente da coisa, e civis as rendas ou interesses que a coisa produz em consequência de uma relação jurídica.
3. Consideram-se frutos das universalidades de animais as crias não destinadas à substituição das cabeças que por qualquer causa vierem a faltar, os despojos, e todos os proventos auferidos, ainda que a título eventual.
Artigo 213.º (Partilha dos frutos)
1. Os que têm direito aos frutos naturais até um momento determinado, ou a partir de certo momento, fazem seus todos os frutos percebidos durante a vigência do seu direito.
2. Quanto a frutos civis, a partilha faz-se proporcionalmente à duração do direito.
Artigo 214.º (Frutos colhidos prematuramente) Quem colher prematuramente frutos naturais é obrigado a restituí-los, se vier a extinguir-se o seu direito antes da época normal das colheitas.
Artigo 215.º (Restituição de frutos)
1. Quem for obrigado por lei à restituição de frutos percebidos tem direito a ser indemnizado das despesas de cultura, sementes e matérias-primas e dos restantes encargos de produção e colheita, desde que não sejam superiores ao valor desses frutos.
2. Quando se trate de frutos pendentes, o que é obrigado à entrega da coisa não tem direito a qualquer indemnização, salvo nos casos especialmente previstos na lei.
Artigo 216.º (Benfeitorias)
1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.
2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias.
3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
Peço perdão pela sessão de Direito (é tudo um bocado maçador, a bem dizer). Também não se queixem muito que isto foram apenas meia dúzia de artigos e o Código Civil tem uns 2334, portanto até foi light.
Mas é que eu sofro um bocado de míopia e outros problemas assim tipo cenas, e portanto, tive alguma dificuldade em encontrar neste texto uma referência a seres humanos como coisas. Logo, se o ser humano não é coisa, não deveria poder ser vendido, doado, trocado, etc.
Posto isto, a não ser que eu esteja a precisar de mudar de graduação, porque raio acontecem coisas destas e destas e destas? São países onde o Código Civil de lá (se é que existe) diz que as pessoas são coisas? E ninguém me contou nada?
É que já viram, se as pessoas fossem consideradas coisas, em que categoria é que nos iamos inserir? Era uma confusão, porque as pessoas podiam ser imóveis ou móveis (quando estou quieta sou imóvel, quando me mexo sou móvel - e como sou pequena seria portátil também), simples ou compostas (há pessoas mais complexas que outras), fungíveis ou não fungíveis, consumíveis ou não consumíveis (há pessoas que se querem comer, outras nem por isso, depende dos gostos), divisíveis ou indivisíveis (depende se a apresentação era em peça inteira ou às postas), principais ou acessórias (acontece), presentes ou futuras (também se percebe). Frutos (lá está, os frutos seriam os filhos das coisas, os meus filhos deixariam de se chamar filhos para se chamarem frutos - a Madalena iria adorar!). E também se poderiam fazer benfeitorias nas coisas (um peeling, um lifting, uma lipoaspiração).
Quer dizer, uma pessoa pensa que sabia qualquer coisa, na volta não sabe um boi, só vós digo!